É fácil ficar verde de inveja, ao fim de três dias em Estocolmo. Mas quando bebemos café numa esplanada sem darmos pelos carros silenciosos é que acreditamos: a cidade vai mesmo estar livre de combustíveis fósseis até 2040
A consciência é um sentimento curioso. Não se acredita que a primeira coisa que uma pessoa pensa ao entrar num avião seja a quantidade de emissões de CO2 que aquele voo produzirá. Pensará no companheiro de viagem que vai sair-lhe na rifa, na sanduíche de sabor indefinido do almoço, nas pastilhas elásticas que ficaram esquecidas na mochila e farão falta, na descolagem. Mas quando o programa de trabalho leva no título a palavra "sustentabilidade" e as frases "tratamento de resíduos" e "planeamento urbano verde", embarca-se a fazer contas às milhas dos voos entre Lisboa e Estocolmo, via Frankfurt. E agradece-se a existência de páginas na internet que calculam a pegada ecológica antes de se conseguir dizer "alterações climáticas".
A má consciência esvanece-se no Arlanda Express, o comboio que liga o aeroporto ao centro da capital sueca. Desta vez, a viagem produz zero emissões. São vinte minutos embalados 100% a energias renováveis, estamos a ler num ecrã que alterna palavras com tremas e mensagens em inglês quando aparece uma mulher-"pica" simpática que risca o bilhete com uma esferográfica.
Uma outra mulher há de levar-nos num táxi até ao Scandic Sergel Plaza. O hotel é vizinho da praça Sergels Torg, uma zona comercial onde os prédios debitam milhares de watts de luz. Mas como nos avisaram que havemos de conhecer as abelhas que vivem no telhado, e comer ao pequeno-almoço o mel produzido por elas, entramos no quarto com o radar verde no máximo. Zero frasquinhos com champôs e geles de banho? Checked. Aquecedor de toalhas para não ser necessário mudá-las todos os dias? Checked. Caixote de lixo com separadores para restos de comida, papel e embalagens? Checked. E nem o hóspede mais distraído vai deixar de ler o cartaz pendurado ao lado do espelho de corpo inteiro: "Lá fora está vento e chove? Ótimo. Este quarto é alimentado pela água e pelo vento."
Todos para Estocolmo!
Na manhã seguinte não chove, mas somos surpreendidos pelo frio (5 graus, brrr!) e por revoadas de folhas secas. A caminho da sede da Agência para a Proteção do Ambiente (APA), num autocarro movido a biogás (produzido com metano dos esgotos e lixo orgânico), Per Sjöberg, funcionário do centro de imprensa do Ministério dos Negócios Estrangeiros, conta como se lembra bem de terem demolido uma grande parte de Estocolmo, nos anos sessenta. No lugar dos velhos prédios ergueram apartamentos energeticamente eficientes.
É também ele quem conta que falta construir muitos mais, porque todos os anos a cidade recebe 20 mil novos residentes, entre recém-nascidos e emigrantes. Dali a dois dias, a nova ministra do Clima e do Ambiente, Asa Romson, dos Verdes, haveria de lamentar o êxodo rural. A também vice-primeira-ministra diria que são, sobretudo, as mulheres jovens a mudar-se para a grande cidade. A tendência é nítida. Dá-se por elas em grupos, na rua. Algumas empurram carrinhos de bebé - mas são tantas quantos os homens, porque, por aqui, o pai tem direito ao mesmo tempo de licença parental que a mãe: 240 dias.
São estas novas famílias que têm comprado casa em Hammarby Sjöstad, bairro que integrou a consciência verde no planeamento urbano, que visitaremos nessa tarde. Mas, por agora, estamos a chegar ao edifício da APA. Recebemos um cartão com uma mola da roupa de madeira, e, quando nos falam do objetivo geracional, um dos 16 decididos pelo Parlamento há 15 anos, trilhamos um dedo a prendê-la na lapela.
O lixo, esse grande negócio
Em 1999, os deputados comprometeram-se a legislar no sentido de não deixarem uma herança ambientalmente pesada. Sanna Due Sjöström, funcionária da APA e líder do grupo de resíduos do conselho de ministros escandinavo, fala na morte do mantra. "Reciclar, reciclar, reciclar." Hoje, prevenir a produção de lixo é o objetivo maior. A prevenção está no topo de uma pirâmide invertida, seguida da reutilização, preparação para a reutilização, reciclagem, recuperação de energia e destruição. Menos de 1% dos resíduos municipais vão para os aterros, diz Sanna, que se lembra de pôr o lixo num buraco, na floresta, aos 10 anos. "Hoje, o lixo é um grande negócio. Por isso, a questão, agora, é quem tem direito a recolhê-lo."
Tomando a família de Sjöström como exemplo, no dia a dia, os habitantes de Estocolmo separam os restos de comida do vidro transparente, vidro de cor, papel, jornal, cartão, embalagens, pilhas, lâmpadas e óleo alimentar, e pagam uma taxa pelo lixo indiferenciado - no ano passado, Sanna pagou 220 euros pela recolha semanal. Ao sábado, o ecoponto é o sítio onde os vizinhos se encontram, despejam os sacos e, muitas vezes, saem com uns trocos no bolso - as garrafas de plástico e as latas têm depósito desde 2006.
É assim que se consegue reciclar 90% do lixo doméstico, mas, se um dia for atingido o objetivo de 100%, as centrais de produção de eletricidade e calor terão de importar todo o lixo de que precisam. Neste momento, ele já não chega para as encomendas. Na Brista II, do grupo Fortum, queimam resíduos trazidos da Noruega e do Reino Unido, contará um dos engenheiros, justificando: "A atmosfera não está limitada por fronteiras nacionais."
O paraíso mora em Hammarby?
A falta de lixo é motivo de orgulho na APA, só pode. Isso e o facto de ele ser separado em 96% das casas e 82% das pessoas afirmarem que o fazem por quererem contribuir para uma sociedade "recicladora".
Em Hammarby Sjöstad ainda é mais simples. Situado a dez minutos de carro do centro da cidade, nas margens do lago Hammarby, em 1997 era uma área contaminada, cheia de sucateiras. A cidade precisava de mais casas e queria receber os Jogos Olímpicos de 2004. O programa de reconversão ambiental da zona era tão ambicioso que os promotores da candidatura previam que seriam batidos recordes à conta do ar puro. Mas Atenas seria a anfitriã.
Estocolmo avançou à mesma com o projeto, e, dez anos depois, há 20 mil pessoas a morar em Hammarby, em prédios com oito andares, no máximo, para o sol chegar ao rés do chão. Quase não passam carros, porque um lugar de garagem custa 150 euros por mês e estacionar na rua 70 euros. "É caro de propósito", admite Malena Karlsson, relações públicas do projeto, "para as pessoas usarem transportes públicos e bicicleta."
Um passeio pelo bairro é, por isso, feito entre jardins, algaraviada de crianças a brincar nos recreios das creches e das escolas, varandas com espreguiçadeiras (não, não há marquises) e dezenas de bicicletas, quase sempre estacionadas ao pé dos ecopontos.
Contribuir até na casa de banho
Por aqui, os ecopontos recebem restos de comida, papel ou lixo indiferenciado. Quando estão cheios, é tudo aspirado debaixo da terra até um terminal da Envac, empresa que tem 70% da sua atividade fora da Suécia (incluindo no Parque das Nações, em Lisboa). Como o camião só vai ao terminal três vezes por dia, reduzem-se as emissões de CO2. Quanto ao destino dos resíduos, o papel é reciclado, o orgânico irá gerar biogás e o restante será incinerado para produzir eletricidade e calor.
Sabe bem falar de aquecimento central quando temos o nariz a pingar. Malena apercebe-se da ironia e conduz o grupo até ao centro de informação, onde quem aproveita para ir à casa de banho regressa a sorrir. Na porta, há um cartoon com a pergunta: "Sven, o que estás a fazer?", e um homem, numa retrete, a responder: "Estou sentado, a fazer biogás."
O cartoon e a frase "Obrigada pela sua contribuição!" fazem todo o sentido, neste bairro. O "modelo Hammarby" manda que 50% da energia usada pelos habitantes seja produzida por eles próprios - as águas residuais, por exemplo, são utilizadas na produção de aquecimento.
A água, escreva-se, é motivo de orgulho em Estocolmo, arquipélago com 14 ilhas. Num briefing na embaixada, em Lisboa, o conselheiro Sten Engdahl falou na pureza do lago Mälaren, frente à Câmara, e de como a água potável da cidade vem de lá. Prometemos-lhes beber um copo diretamente do lago, mas fica para o dia em que virmos um salmão ser pescado junto do Parlamento - consta que são os melhores do país, mas o pescador que ali encontramos todas as noites devia andar em maré de azar.
A poluição também se referenda
Teríamos mais hipóteses de ver animais selvagens na visita ao telhado do hotel, onde o alemão Frank Horst, antigo cozinheiro, colocou seis colmeias, há três anos. As abelhas alimentam-se das flores dos parques mais próximos, mas, em setembro, recebem sempre alguns quilos de açúcar para conseguirem resistir ao inverno. O frio matá-las-ia pela certa, diz Frank, mostrando rapidamente um quadro de uma das colmeias. Nem repara quando é picado pelas abelhas friorentas.
A vista é lindíssima. Com tanto verde das árvores, azul da água e amarelo dos edifícios mais antigos torna--se difícil acreditar que, há 60 anos, Estocolmo estava cinzenta por causa do aquecimento doméstico. Hoje, o fumo quase desapareceu. Oitenta por cento das casas são aquecidas por um sistema de distribuição em rede, e 80% da energia é renovável. Em 2040, prevê-se que a cidade esteja livre de combustíveis fósseis. Para tanto, há que virá-la para os peões. "Já há uma mudança de foco, nitidamente", diz Linda Persson, especialista em desenvolvimento urbano da Câmara. "Agora, as pessoas estão primeiro."
Em 2005, quando os deputados debatiam a hipótese de criar uma taxa de congestionamento para os carros que entram no centro, mais de 70% dos habitantes manifestaram-se contra porque achavam que era apenas uma maneira de encher os cofres. No ano seguinte, o "sim" passou à tangente no referendo. Mas, em 2013, mais de 70% considerava que a taxa é por uma causa justa. "Foi uma mudança completa", orgulha-se Gunnar Söderholm, diretor da divisão de Ambiente e Saúde da câmara, oferecendo uma fatia de karlsbaderbröd, um pão recheado com pasta de amêndoa que comprou para adoçar a boca aos jornalistas estrangeiros.
É só coisas boas. Como menos engarrafamentos é igual a menos poluição, o ar da cidade está cem vezes mais limpo do que em 1965. As receitas líquidas da taxa alimentam os transportes públicos e vão, em breve, ajudar à expansão da linha de metro. Não falamos de coisa pouca - o bolo chega aos 75 milhões de euros, por ano.
A casa do futuro vai ser assim
Estávamos verdes de inveja quando nos sentámos, nessa tarde, à mesa com a ministra do Clima e do Ambiente, que nos tirou os óculos cor-de-rosa. Falta discutir a dependência da energia nuclear na Suécia - 40%, lembrou Asa Romson - e os caminhos de ferro. "Não há comboios e foram construídas demasiadas estradas", lamenta.
Na manhã seguinte, é por uma autoestrada livre de portagens (são todas) que rumamos a Upplands Väsby, a norte de Estocolmo, para visitar a primeira casa passiva certificada da Suécia, que é também uma ZEB (sigla em inglês para edifício de emissões nulas).
Junto à Villa Björken, situada na fronteira de um bosque de bétulas (björken significa bétula), o grupo tenta não ficar parado por causa do frio, enquanto Michael Staffas, da Fiskarhedenvillan, chama a atenção para as características exteriores da casa: fachada em fibrocimento (não precisa de manutenção); telhado coberto de plantas (isola e "agarra" água da chuva); painéis solares para a eletricidade e as águas quentes (vendem energia no verão e compram no inverno).
Lá dentro, estão 22 graus, à custa da água que foi aquecida com energia geotérmica e agora aquece as paredes. Michael enumera os princípios fundamentais de uma casa passiva: bom isolamento; janelas "verdadeiras"; sistema de ventilação com recuperação de calor; envolvente do edifício estanque ao ar; e eliminação de pontes térmicas. "As casas do futuro vão ser todas assim", antevê, "ou, então, não alcançamos o objetivo zero emissões."
Compensar longe, na Índia
Da Villa Björken, onde os vidros triplos não deixam passar o som dos pássaros, partimos para o aeroporto de Arlanda, a uma curta distância de carro. É a última etapa da missão de explicar como Estocolmo foi considerada a primeira cidade europeia verde, em 2010 (distinção a que agora se candidatam Lisboa, Porto e Cascais).
No Arlanda, local de passagem de mais de 20 milhões de passageiros por ano, o objetivo é ambicioso: zero emissões de CO2 nas operações em terra, já em 2020. Não é uma utopia, dizem, porque, desde 2005, conseguiram reduzir 68% das emissões e 30% do consumo de energia. Adotaram os "voos verdes", sem arranques nas descolagens e nas aterragens. Mas trocar os atuais limpa-neves por outros que não usem combustíveis fósseis será o próximo desafio.
Entretanto, vão compensando as emissões investindo em projetos em países pobres. Neste momento, são parceiros, por exemplo, numa central de biomassa no Estado indiano de Andhra Pradesh - e convidam os passageiros a fazerem o mesmo. A página na internet do grupo Swedavia faz as contas às milhas dos meus quatro voos e determina: são quase 40 euros pela emissão de 973 quilos de CO2. Quem já ofereceu os créditos ao projeto na Índia também ajudou a construir a cozinha da escola local e a comprar dois riquexós para a recolha de lixo doméstico. E ficou bem com a sua consciência.
Fonte: visao.sapo.pt 14/11/14 (Rosa Ruela, em Estocolmo-reportagem publicada na VISÃO Verde 1131, de 6 de novembro)